14h30 – 24 de Agosto de 2009 - Aeroporto Internacional do Cairo
Acabou. A aventura e a viagem. Ainda faltam umas quantas horas de voo, uma escala e dois aviões, queira a divina previdência que incluam delambidas refeições que lá vão enganando o estômago dos menos exigentes. Mas creio que isso já não conta. A viagem de regresso não é mais do que punição, o castigo, pelo esbanjar de dinheiro, que não podia ter sido melhor empregue, diga-se, e pela gula de história e experiências em pleno Ramadão.
Peixe-Espada preto, costumava chamar-me a minha família. Tudo por causa da cor de uma pele aparentemente mais resistente aos efeitos do Deus do Disco Solar, Amon-Ra para os crentes, a maior estrela da galáxia para os académicos ou simplesmente Sol para as gentes sem manias.
Assim que pisei o chão do Cairo, comecei a duvidar das minhas origens. Percebi que as minhas raízes não podem estar só no velho continente. Sensação semelhante à que experimentei na América Latina. Deve ser do calor... Pausa.
O frenesim de carros, luzes e chamamentos para a quarta ou quinta reza do dia, não consegue perturbar o estranho sentimento de sentir que cheguei a casa. Olho em redor. O trânsito é caótico. O taxista, que me vigarizou sem piedade, pergunta-me os chavões da praxe - como me chamam, onde nasci e para onde vou. Faz um intervalo no interrogatório. Olha pelo espelho retrovisor com ar de criança que está prestes a fazer traquinice, aquele sorriso preso no canto dos lábios e finalmente pergunta, num inglês carregado, mal articulado, mas com um sotaque delicioso: “Podes conduzir aqui?” Ora, o bom do português assume que a pergunta tem que ver com questões legais; se pode ou não. “Posso, a minha carta é internacional, acho eu”.
Pausa para comentário rápido: duas mesas ao lado da minha, onde escrevo estas linhas de puro exorcismo de uma ressaca que vai durar, encontra-se, provavelmente, uma das raparigas mais bonitas com quem já me cruzei. Olho azul, inglês perfeito. E uma grande distracção para quem precisa de imprimir no papel do Hemingway aquilo que a alma quer dizer. Stop. Fim de comentário e volta à prosa. Do que falávamos mesmo? Pois, de leis. Não, não era de leis que ele queria saber. Responde-me sarcástico “Poder é uma coisa, conseguir é outra totalmente diferente.”; “Conseguias?”, pergunta-me desafiador. Olho mais uma vez pela janela lateral do carro com ar condicionado (um luxo por estas bandas) que me transporta até à baixa e respondo resignado: “Claro que não...”. Se calhar não tenho assim tantas raízes Árabes quanto isso.
A viagem continua até ao coração do Cairo. Aproveito para rever mentalmente se não me tinha esquecido de nada que me fizesse falta. Na verdade foi uma desculpa para não continuar uma conversa que me estava a deixar numa posição de fragilidade incómoda. Homem que é latino nem indicações pergunta, quanto mais esfregarem-lhe na cara que não consegue conduzir um carro. Essas raízes também as partilho.
No meio da revisão, percebo que os dois livros que levei para me confortar nos momentos de pausa, pareciam ter sido escolhidos a dedo. Mas não foram. Engraçado que há coisas que não são planeadas e que, de repente, parecem fazer todo o sentido.
Dias antes de embarcar para o Egipto decidi comemorar o meu aniversário, de um pomposo quarto de século, juntando à mesa os meus melhores amigos. Digam o que disserem, todas as desculpas para fazer uma jantarada, perdoe-se a grotesca descrição, são boas. Nesse animado serão, uma amiga, pessoa especial, ofereceu-me não só a sua presença, mas também um desses livros. Óbvio que parte em vantagem e sabe que adoro devorar histórias. O livro é “No teu Deserto” de um Miguel Sousa Tavares que só conheço da televisão. Desculpa Miguel, não é por mais nada, nunca calhou, é só isso. ‘O descaramento do miúdo!’, pensamos todos neste momento, a tratar o Sr. Advogado, Jornalista, Escritor, Comentador e por aí adiante, por Tu. Desfaçam-se já as dúvidas e as confusões: não é desrespeito, é feitio. Continuo sem perceber porque é que uma Humanidade como a nossa, trata os seus deuses por Tu e as pessoas por você...
Pois, passado o interlúdio formal, ia dizendo que, neste livro, leio uma frase interessante. Diz o Miguel: “Fiz filhos, construí casas, escrevi livros e plantei árvores. Gosto da continuidade das coisas.”
Preciso de um café.
Depois de ter trocado todas as Libras Egípcias que me restavam, ficaram só aquelas cujo valor é tão baixo que se recusaram a fazer-me o câmbio. Restam-me 14 Libras. O café é 17,5. Bolas. Podia pagar em Euros, mas só tinha uma nota de 10 e o troco viria em Libras Egípcias, sem qualquer utilidade fora do Egipto. Resignado, guardo o dinheiro, como quem mete a viola no saco, e retiro-me para libertar o balcão para quem possa pagar o seu café. Mesmo antes de guardar a última Libra, outra simpática moça de nacionalidade desconhecida, estende-me a sua mão com 4 Libras, para poder degustar o poder da cafeína. Agradeço, envergonhado, mas não recuso.
Precisava mesmo de um café.
Shukran e um sorriso de volta.
De regresso, portanto, à citação do Miguel. Ao contrário dele, ainda não fiz filhos, mas espero fazer, ainda não construí casas porque não as posso pagar, acho que plantei árvores quando andava na escola primária.
Também eu “gosto da continuidade das coisas”.
Bruno Martins
2 comentários:
Que bonito!!
=)
muito obrigado!
BM
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